sábado, 13 de novembro de 2010

PROJETO RONDON - UMA LIÇÃO


             O ano era 1972... isso mesmo, década de setenta do século passado... Estava na Universidade, Faculdade de Letras, PUC/RS.
Uma das muitas coisas boas que me aconteceram naquela época, foi ter participado do Projeto Rondon – um intercâmbio de alunos universitários dos quatro cantos do Brasil.

 Alunos do norte iam para o sul, e os do sul iam para o norte, numa troca de experiências que dava aos universitários a oportunidade de vivenciar, in loco, realidades diferentes daquela onde vivia.
Numa das operações do Projeto Rondon das quais participei, aconteceu esse fato que demonstra apenas uma parte das diferenças regionais existentes. Ainda hoje, quando viajo por esse Brasil a fora, vejo coisas assim que caracterizam cada região como única...
Fomos designados para a cidade de Juazeiro, no interior da Bahia, às margens do rio São Francisco. De um lado do rio, Juazeiro/Bahia, do outro lado, Petrolina/Pernambuco.
Depois de uma viagem de seis dias de ônibus, de Porto Alegre a Salvador (3127km), tivemos apenas um pernoite em S. Paulo, no estádio do Pacaembu...
Marilia com sua longa trança...

Embarcamos noutro ônibus para Feira de Santana (mais 116km). Em Feira de Santana pegamos um outro ônibus com destino a Juazeiro (mais 395km). Total de quilômetros rodados dentro de um ônibus, sem poltronas reclináveis, sem conforto... mas com muito entusiasmo, muita bagunça, muita cantoria...: mais de 3600 km !!

Acreditem, esse magrela, do meio, sou eu sim !!!


Numa das muitas paradas pelo caminho
 Foram longos dias, sentados naqueles ônibus "especiais" que pareciam nunca chegar ao nosso destino. Claro, para que pudéssemos aguentar essa verdadeira aventura, parávamos esporadicamente para esticar as pernas, comermos alguma coisa, ou analisarmos peculiaridades locais... mas dormir - só em S.Paulo ou então no ônibus mesmo...

Chegamos finalmente ao nosso local de atuação. Um grupo de oito jovens gaúchos, estudantes universitários de diversos cursos, para uma atuação conjunta com a Prefeitura local, no desenvolvimento de projetos previamente acordados entre a Coordenação Nacional do Projeto Rondon e a Prefeitura. Após uma calorosa recepção, fomos encaminhados para um hotel – que não era hotel, era pensão mesmo...
Muita bagagem... ainda bem que apareceu um carrinho...

Rapazes em dois quartos, dois a dois, e meninas noutros dois quartos, duas a duas. Tudo muito simples, mas acolhedor. Todos instalados, tivemos, finalmente, uma noite de sono reparador numa cama de verdade e não nos bancos dos ônibus... No dia seguinte, gentilezas de todas as maneiras para conosco. Prefeito, secretários municipais, diretores de escolas, vereadores... enfim, a comunidade inteira nos recepcionou muito bem, colocando tudo ao nosso dispor para que pudéssemos atuar da melhor forma possível. Depois de uma manhã inteira de preparativos, eis que chega a hora do almoço.
A dona da pensão, uma senhora negra, de estatura baixa, bem baixa - devia ter por volta de 1,50m apenas - e uma idade que calculamos ser acima dos setenta anos -  mas que possuía um coração enorme, bem maior que a Bahia, uma rica pessoa, gentil, amável, atenciosa... um amor de pessoa. Sempre querendo nos agradar, de uma forma ou de outra. Pois bem, nosso primeiro almoço foi uma maravilha! Será?

O arroz veio meio soltinho, meio grudado, porque, depois de cozido, foi passado, com o auxílio de uma peneira, sob uma torneira de água fria - para soltar, disse-nos ela! – imaginem! – claro que esfriou tudo...
O feijão com todos os temperos da culinária baiana... porém com uma grossa camada de gordura por cima... e, igualmente frio, ou melhor, na temperatura ambiente. (E nós acostumados com feijão sempre quentinho!!!)


Foi assim no dia seguinte também... até que, no terceiro dia, pela manhã, resolvemos conversar com a senhora dona da pensão... com todo tato, com todo jeito, afinal ela estava tentando fazer seu melhor possível, queria mesmo nos agradar – e acreditava que estava agradando. Como falar com ela? Foi preciso muita diplomacia... mas acabamos falando...
Dissemos a ela que estávamos acostumados a comer a comida TODA quentinha, o feijão sem muita gordura, que o arroz podia vir do jeito que viesse, desde que fosse quente, enfim, explicamos com todo cuidado como eram nossos costumes. Dissemos que entendíamos a sua boa vontade, mas que não estávamos nos alimentando direito daquela maneira.
Ela abriu-se num largo sorriso mostrando toda sua alva dentadura, completa, intacta, coisa rara numa cidade como aquela, e disse: “Ora meninos, porque não falaram antes? Não se preocupem, vou providenciar para que tudo saia exatamente como vocês querem”... E assim fez. Gentilmente fez...

Ao meio-dia, depois de uma manhã de trabalho incessante junto à comunidade, depois de muito caminhar sob aquele sol escaldante, voltamos para nossa pensão para saborear, enfim, nosso almoço, bem ao nosso gosto, conforme nos tinha sido prometido...
Todos à mesa, travessas sendo servidas...
O arroz, bem feitinho – mais ou menos soltinho, e... quente! ...
O feijão, sem camada de gordura e com pouca pimenta, e... quente!
A carne, sem muito óleo ou gordura, e... quente!
As batatas, bem ao ponto, e... quentes...
E, para nossa surpresa... veio a salada de alface com tomates... e ...quentes !!!!!!!!!!!
Ela levara nosso pedido à risca... tínhamos dito que comíamos TUDO quente, pois ela serviu TUDO quente... O alface estava escuro, murcho, o tomate sem cor, ressecado... tinham sido colocados no forno para esquentar!!!
Não nos restou outra alternativa; no dia seguinte alguns de nós não foram atuar para ficar na cozinha orientando as cozinheiras... E desde então passamos a comer como desejávamos.

Ficamos na cidade em torno de 45 dias, tempo de duração das operações do Projeto Rondon. Depois veio a longa viagem de volta, só que, dessa vez, mudamos de ônibus e o pernoite de volta vou no Rio de Janeiro.

Uma longa viagem com a alma lavada e a mente explodindo de novas idéias, com uma nova visão de realidade. Eu, pelo menos, pude vivenciar experiências inimagináveis dentro do estilo de vida que sempre tivera, pude conhecer outro Brasil, que mais tarde viria saber era apenas mais um dentre os inúmerois Brasis existentes dentro desse país continental.
Deixamos lá um pedaço de nossos corações, mas trouxemos muitas lições - de vida, de humildade, de carinho, de amor...
Bons tempos... boas lembranças... uma verdadeira lição de vida...


Um comentário:

  1. Bela história Professor, me deu uma vontade de comer "vatapá com arroz"... Hummmmm

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